A Herdeira: Transmitindo estereótipos todos os dias da semana

À pergunta do que é que estou a fazer sozinha em Lisboa, respondo que, para além de estudar português, faço pesquisa sobre os estereótipos dos ciganos. As respostas que obtenho obrigam-me a ter sempre lápis e caderno à mão. De uma forma assertiva, começam com “que bem que dançam e cantam os ciganos” e terminam com “continuam a ser nómadas, inadaptados sociais, e amantes do alheio”. Depois falam-me sobre “A Herdeira”, uma telenovela com tremendo sucesso em Portugal que tem como protagonista uma “cigana” loira de olhos azuis. Como já poderão ter adivinhado, Luz Fuentes -a protagonista- foi raptada e dada em criança a um cigano. Este é um tropo ligado à literatura ibérica pelo menos desde a publicação de “La Gitanilla” (1613) de Miguel de Cervantes. Luz, apaixona-se por um diplomata e, assim, descobre a sua verdadeira origem; ela é a herdeira da fortuna duma família aristocrata.

Na entrevista a Maria João Mira argumentista da telenovela, ela declara: “o nosso país é muito cosmopolita e multicultural, e nós quisemos refletir isso”, “A ideia de que somos todos iguais é uma mensagem que, hoje, vale a pena passar, num mundo cada vez mais em turbulência e com as pessoas cada vez mais entrincheiradas no medo e a valorizarem as diferenças em vez das semelhanças”.[1]Dito isto, na Herdeira, os loiros e brancos são ricos e poderosos, os negros são motoristas e empregados, os ciganos gostam de dançar e tocar música e são mais escuros do que os brancos (mas menos escuros do que os negros), e os mexicanos são narcotraficantes e de cor chocolate, como os ciganos. Sabem que mais? O cigano mau trafica droga dos mexicanos e a mulher com o bronzeado mais perfeito que eu já vi, esconde o segredo da sua ciganidade.

“A Herdeira” merece ser vista só para percebermos que “ser cigano” não é uma atitude ou uma moda. O que quero dizer é que ser “hippie”, músico viajante, ou ter gostos extravagantes, não te converte num. Sobretudo quando milhares de homens e mulheres têm sido assassinados por falar romanes, ter um fenótipo diferente, ou formar parte dum grupo com um comportamento que se diferencia da norma. Parece-me que os romanies em Portugal, também chamados ciganos, mudaram muito, a maior parte não são nómadas, tem convicções religiosas profundas, a escolaridade dos miúdos está a incrementar-se, existem programas organizados por eles mesmos que incentivam os jovens a continuarem a sua educação superior, e há também um movimento feminista emergente. Quando me dizem que os ciganos devem mudar, respondo que somos nós que devemos mudar a forma como olhamos para eles.

Quando comecei a análise da telenovela tinha vontade de falar dos preconceitos contra os ciganos. Contudo, depois repensei a minha estratégia, por ter percebido que este material dá para várias teses. Só no primeiro episódio, enquanto Luz está a apanhar sol no topo dum reboque (tentando cruzar o México para chegar aos Estados Unidos para tornar o seu sonho realidade em Nova Iorque), presencia a morte dum menino migrante ilegal, que viaja sozinho. Depois, o General Emiliano, futuro presidente do México é mandado assassinar pela sua mulher, durante o casamento da sua filha. Além disso, Luz e o seu “pai” tentam fugir para os Estados Unidos através dum narco-túnel do cartel de Monterrey.[2]

Se não tiverem uma hora diária para apreciar este produto da pós-modernidade, recomendo, ainda assim, o genérico, em que a protagonista e a antagonista parodiam, a ritmo de “despacito”, o vídeo “bailando”, de Gente de Zona e Enrique Iglesias, confluência maravilhosa das imagens mais representativas do “cigano alegre” com icónicas músicas da cultura pop latina.

 

[1]http://selfie.iol.pt/a-herdeira/exclusivo/maria-joao-mira-vai-ser-uma-novela-com-muito-exotismo-sensualidade-e-paixao

[2]https://www.youtube.com/watch?v=eBVnqm7Wq7c

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