José Saramago (1922-2010) – 90 anos!

A 16 de Novembro, José Saramago (1922-2010) fez 90 anos, o único nóbel da literatura portuguesa até hoje, recebido em 1998. Quando recebeu o prémio dedicou-o a sua avó Josefa, de 90 anos. Eis um excerto desta dedicatória:

Carta para Josefa, minha avó:

Tens noventa anos. És velha, dolorida. Dizes-me que foste a mais bela rapariga do teu tempo – e eu acredito. Não sabes ler. Tens as mãos grossas, deformadas, os pés encortiçados. Carregaste à cabeça toneladas de restolho e lenha, albufeiras de água. Viste nascer o sol todos os dias. De todo o pão que amassaste se faria um banquete universal. Criaste pessoas e gado, meteste os bácoros na tua própria cama quando o frio começava a gelá-los. Contaste-me histórias de aparições e lobisomens, velhas questões de família, um crime de morte. Trave da tua cama, lume da tua lareira, – sete vezes engravidaste, sete vezes deste à luz.

Não sabes nada do mundo, não entendes de política, nem de economia, nem de filosofia, nem de religião. Herdaste uma centena de palavras práticas, um vocabulário elementar. Com isto viveste e vais vivendo. És sensível às catástrofes e também aos casos da rua, casamentos de princesas e ao roubo dos coelhos da vizinha. Tens grandes ódios por motivos de que já perdeste a lembrança, grandes dedicações que assentam em coisa nenhuma. Vives. Para ti a palavra Vietname é apenas um som bárbaro que não condiz com o teu círculo de légua e meia de palmo. Da fome sabes alguma coisa. Transportas contigo o teu pequeno casulo de interesses. E, no entanto, tens os olhos claros e és alegre. Como tu não vi rir ninguém.

Estou diante de ti e não entendo. Sou da tua carne e do teu sangue, mas não entendo. Vieste a este mundo e não curaste de saber onde é o mundo. Chegas ao fim da vida e o mundo é para ti, o que era quando nasceste: uma interrogação, um mistério inacessível, uma coisa que não fazia parte da tua herança […].

Mas porquê, avó, porque te sentas tu na soleira da porta, aberta para a noite estrelada e imensa, para o céu de que nada sabes e por onde nunca viajarás, para o silêncio dos campos e das árvores assombradas e dizes, com a tranquila serenidade dos teus noventa anos e o fogo da tua adolescência nunca perdida:

“O mundo é tão bonito, e eu tenho tanta pena de morrer!”

José Saramago

 

 

 

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